Sobrevoos e gaiolas

TANTO O QUE PENSAR SOBRE ISSO… que eu chegava para adentrar minhas grades, ele se esforçava, inexperiente, para sair de todas elas; que, tão jovem, não aceitou viver como tantos fizeram antes (será que pensou nisso?); que, por curiosidade ou vontade – talvez os dois – descobriu o tamanho de suas asas literais; e eu confundi um periquito com beija-flor, desacostumada a vê-los em voo.

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Nunca vi um deles voar. Apesar de ter sido criada na mesma grade que todos os periquitos que passaram por aqui, jamais os vi de asas abertas. Aquela região nas costas que, fechadas, as asas escondem, sempre foi um mistério para mim.

Levei vinte e dois anos para, finalmente, presenciar que os prisioneiros podem sim voar. Ele levou alguns meses. E os seus, que deram-lhe origem, ainda não sabem, e conversam no espaço em que nasceram.

Eu chegava, com a chave da minha gaiola nas mãos. Passos antes de alcançar o cadeado – não lembro de um dia em que meu portão teve um trinco que funcionasse, sempre o cadeado (este símbolo máximo que selava minha prisão). Passo antes, seu voo me surpreendeu: rápido, cambaleante. Devia ser a primeira vez que a gaiola parecia tão grande. Ele passou a poucos centímetros dos meus olhos, meus braços fechados junto ao corpo, e aterrissou do outro lado da rua, embaixo de um carro verde parado: uma árvore estacionada, em sua analogia.

Eu, que sempre torci para ver aqueles pássaros voarem para longe, mas nunca interferi diretamente – diante dos comentários de meu pai que dizia, com alguma frieza e alguma inocência, que morreriam lá fora – comemorei! Senti orgulho desta ave, que por engano ou plano infalível soltou-se e voou.

No meu pensamento, a cena já repassava ao terminar: rápida de início e desacelerando depois, prolongando, demorando para acabar. Acompanhei com o olhar o trajeto, pensando lentamente: um beija-fl..periquito. E não contive o êxtase ao perceber. Avisei aos gritos o ocorrido: “O passarinho azul fugiu. Ele escapou!”. A alma sorria e eu estava leve, como se pudesse voar junto, como se descobrisse as próprias asas sob a pele.

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Há anos convivo com seres presos. Pássaros engaiolados são das memórias mais antigas.

Pelo tempo que me lembro, meu pai sempre gostou de bichos. Pelo tempo que me lembro, minha mãe também. Até aí, são verdadeiras e mentirosas essas frases. Vou reescrever, espere. “Pelo tempo que me lembro, meu pai sempre gostou de bichos, minha mãe não.”

Dos cachorros, só os periquitos e canários passaram pela aprovação dela. E ele os criou, primeiro dois deles, engaiolados como de costume por aí. Nunca entendi porquê. Qual motivo, senão inveja ou algo ainda mais banal, faria alguém construir grades, brancas, bem trabalhadas, para aprisionar o que pode voar? (amplie a grade até aonde a vista não alcança, coloque as asas em forma de palavra, como, por exemplo, “liberdade” e depois olhe ao redor). Ainda não faz sentido.

Quando o “Adão e Eva” da dezena de pássaros, todos periquitos coloridos, que moram aqui chegou, os cachorros tinha ido. As gaiolas foram de um a seis rapidamente. Uma geração de pássaros que nasceu sem saber voar, que morreu sem voar.

Fascinado pela natureza como é, penso que meu pai quis trazer um pouco de seu Paraná para esta casa, de paredes frias, quando trouxe os pássaros. Houve um tempo, no início desta coleção cruel, em que dois canários viveram aqui. Um branco e um amarelo. Juntos, os dois, cantavam a música dos canários e, por um tempo, egoísta talvez, ouvi aquele canto e esqueci, também, que odiava aquelas grades.

Minha irmã, ainda mais pequena que eu, cultivou certo carinho pelo par. Todo dia, quando meu pai descia as gaiolas ao chão, para trocar água e colocar comida, ela colocava os dedos entre as grades. Tentava tocar o que estava preso, e isso aconteceu muitas vezes.

Talvez para que não víssemos todas as nossas grades – numa época em que, para ver o céu, eu precisava escalar o tanque de pedra – meu pai colocava uma fita cassete com sons de outros pássaros. E, se você fechasse os olhos, sem respirar, talvez conseguisse imaginar-se no mundo depois das grades, com a bunda em outro lugar que não o sofá ou a cama.

Uma manhã, os canários não cantaram. Um estava com a cabeça dentro do pote d’água – uma embalagem de margarina nada segura. O outro, triste acredito, não emitia um pio.

Não me lembro se foram meses, semanas ou dias – vivia naquele tempo que o relógio não conseguia ainda contar. Não me lembro, mas o canário que restou adoeceu e morreu.

Nas duas mortes minha irmã aprendeu a perder algo de que gostava. Talvez pode ver ali que os seres presos também podem morrer, a diferença era ter vivido. E eu aprendi ali que a solidão dói, que te faz parar de cantar e que sem música também se morre.

Sobre eles, não sei se voaram de verdade antes deste final cru e cruel, um término triste em uma gaiola branca, abastecida com comida e água. Sei que morreram de asas fechadas.

Apesar de abominar suas prisões injustas, só interferi – ou tentei – uma vez no curso deste enredo. Aproveitei a gaiola baixa e, de mansinho, amarrei a portinha aberta, de modo que os pássaros pudessem sair e me afastei.

Para minha surpresa infantil, os pássaros apenas encararam aquele vão em que o cenário parecia não ter linhas. Estranharam aquela abertura ou, já acostumados, a vista embaçada sugeriu que houvessem ainda mais grades ali. Meu pai voltou e me repreendeu ao ver minha tentativa de incitar a revoada da revolução.A tradição da gaiola manteve-se firme por mais uns anos. Até hoje.

(covardes, me encaram enquanto falo das nossas gaiolas.
nem voam os que as têm, nem as criam o que as desejam)

A vida derrete

__ Carteirinha?

__ Aqui

A moça usa um coque alto e parece sufocar dentro do uniforme azul claro. Uma gota de suor desce pela testa brilhante. Será que ela tá bem? Ela confere meu rosto na foto da carteirinha. Para pagar meia é preciso não envelhecer, que é pra sempre parecer com uma foto tirada há anos.

__ Tudo certo – ela responde – sua mochila, por favor.

Com um pouco de vergonha, abro o zíper da minha mochila velha e com cheiro de queijo. Literalmente queijo. Uma vez, há uns anos, minha mãe me preparou um misto quente e eu esqueci dentro da mochila. No primeiro dia estava sol, no outro também. A coisa foi ficando lá dentro e parecendo criar vida. Apesar de eu ter notado o cheiro duas semanas depois, o cheiro forte do sanduíche parece ter transcendido. A aromática de sua alma vive na minha mochila. Da vergonha vou ao riso contido quando percebo que ela percebeu que algo habitou ali por tempo demais.

__ E sua câmera?

__ Não tenho – respondo e devolvo a mochila às costas.

Prestes a me liberar ela baixa os olhos para se aproximar dos meus – perto demais, eu diria – e como quem prevê que encontrou o problema do dia diz:

__ Deixa logo eu ver a câmera que a fila tá aumentando

Olho para trás e vejo que o tempo além do normal já chamou atenção das pessoas. Uma menina logo atrás de mim faz um autorretrato na fila. Consigo vê-la digitar “Almodóvar #fila #partiu” antes de enviar a foto. Uma garota loira reclama um “vai logo” atrás de mim e eu me volto para a frente, dou de cara com as gotas de suor aumentando, a testa brilhando ainda mais.

__ Senhor, seu celular tem câmera?

Balanço a cabeça que sim, mas logo lembro que não e movo a cabeça pros lados. Ainda uso SMS para me comunicar quando, às vezes, preciso. Ela fica surpresa e logo impaciente.

__ Sem câmera o senhor não pode entrar.

Desde quando uma senhora chama um adolescente de senhor?

__ Mas moça, eu paguei o ingresso, tá tudo certinho aí, não está?

E por que eu não chamo, afinal, a senhora de senhora?

__ Não, o senhor não viu a placa? – olho pro lado e vejo duas silhuetas numa placa estilo porta de banheiro. Os dois bonecos estão de mãos vazias dentro do circulo com uma faixa preta, de proibido, em cima – Pra que o senhor vai querer ir sem câmera? Como é que vai lembrar?

Agora estou aqui, tomando um sorvete sozinho do lado de fora de uma lanchonete, sentado na sombra – o sol à espreita – e o meu ingresso da exposição se desfazendo no bolso. Uma garota senta ao meu lado, noutra mesa, e coloca um potinho de sorvete bem decorado sobre o tampo de madeira. Ela mexe no celular para ajustar o foco e ter alguma lembrança feliz do sorvete que ela provavelmente vai provar depois de derretido.

Cérebro na varanda

Cérebro na varanda

Bateu com o cérebro na parede. Uma, duas, três vezes. E só para ter plena certeza de que não funcionava mesmo, conferiu e bateu pela quarta, quinta, sexta vez. Era o bastante. Há alguns anos havia se submetido a uma cirurgia. Moda de seu tempo, todos os jovens se sujeitaram a nova regra estética. Até que a moda finalmente chegou a uma encruzilhada: se firmava como cultura e parte do cotidiano ou perdia força até morrer, para, quem sabe, voltar daqui uns anos.

A onda de intervenções cirúrgicas foi tão espontânea que não havia explicação e nem cabelos, apenas cérebros expostos. Dias depois, notícias sobre as mortes mais banais começaram a se espalhar. Era farpa no lobo frontal, coceiras no lobo parietal. Se com cabeça já era difícil viver, sem ela então a vida piorou muito.

Bêbados e especialistas discutiam o assunto incessantemente. Não chegavam a um concesso sobre um procedimento, tão perigoso e sem sentido, encarado como normal.O que fizeram com estes cérebros antes de convencê-los que remover parte de suas cabeças seria algo viável?

Alguns pais, acusados de irresponsáveis, autorizavam e pagavam pela nova moda. Não queriam que seus filhos, ainda tão pequenos, sofressem com a exclusão da sociedade descabeçada.

Um a um, todos esses seres inovadores foram morrendo, até que restou ela. A única esquisita sem o topo do crânio de toda a sociedade. Teve a sorte de ter um cérebro mas duro do que a cabeça de vento que o envolvia.

Ainda estava de frente para o muro, pensando no que fazer quando uma criança passou atrás dela. Nem precisava se virar para saber que o pescoço da criatura estaria erguido, e seus olhinhos encaravam o cérebro ensanguentado e exposto. Era um ser estranho que toda a sociedade repelia. Como se meses atrás não estivessem aguardando vagas para fazer o que viam nela.

Começou a andar de volta para casa. Derrotada. O cérebro não queria morrer e o pior! Impedia que ela tentasse matá-lo. Parecia rir de cada tentativa dela, como se não fossem a mesma coisa. Devia ser sortuda, isso sim! Mas de uma maneira ruim.

Às vezes, acordava no meio da noite – não era fácil dormir sentada – pensando na cabeça perdida, vendida. Antes dos procedimentos serem proibidos – após o filho de uma das personas alto escalão da OMS padecer da moda – todos os crânios removidos foram utilizados para a confecção de bonecas humanas. O que vendeu feito água no deserto, lotado de turistas sedentos.

Conspiradores dizem que a espontaneidade cirúrgica não foi tão espontânea assim. As especulações iam de acordos milionários com a grande imprensa, que teria ajudado na formação da boa imagem da intervenção, à drogas de controle da mente, diluídas na água.

A última sobrevivente sabia que não fora nada disso que a levou a tal atitude. E ao mesmo tempo não entendia bem os porquês de ter feito aquilo consigo. Portanto, quando o pânico assaltou seu controle, ela deixou de se questionar para tentar sobreviver a outro dia. Pois, então sobreviveu demais. O suficiente para que todos os outros fossem antes de ela ter a chance de escapar.

Os olhares vinham de todo canto. Até os objetos pareciam olhar estranho para ela. Perguntava-se por que não a matavam logo? As propostas feitas para tentar amenizar as consequências foram ignoradas. Ninguém queria ajudar. Aquele era um capitulo da história da humanidade que decidiram deixar morrer e esquecer. O crânio de acrílico, ideia de um acrânio, agora morto, nunca foi levada em frente.

Decidida a ignorar os olhares repletos de ódio e repugnância, sentou-se num banco embaixo de uma árvore e escancarou o cérebro, não literalmente, em busca de uma solução.

Começou a perceber que da repugnância para a piedade é um passo. E decidiu que a partir de agora seria a vítima, não das próprias decisões, mas deles. Diria que a culpa de tudo aquilo era dos malditos padrões. E que os padrões eram culpa deles.  Choraria se precisasse, contaria que perdeu mãe, pai e cachorro. Eles se sentiriam dó e seria mais fácil viver, embora fosse impossível que depois de quase dois anos ainda continuasse ali. Como não morrera? O ambiente era propício para cérebros? Deveria morrer só de poluição, ou de  pó, de fumaça de cigarro. Mas continuava ali. Teria uma vida digna dali para frente e levantaria  a voz em prol de direitos. Não era justo continuar assim. Lutaria pelos milhares de mortos e pela própria vida. Aquilo não poderia simplesmente ser esquecido. E ela não poderia viver sabe-se-lá quanto tempo mais sobre a mira repugnante daqueles olhos.

Matutava tanto sobre tantos porquês que nem ouviu o pássaro que cantava de um dos galhos da árvore. Matutava tanto que nem sentiu quando a merda do pássaro cantor atingiu em cheio o lobo parietal. Quando aquilo escorreu, ela já estava morta.

Uma crônica familiar sobre o orgulho – O domingo extraordinário

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Era o extraordinário domingo do ano: fazia sol e todos estavam em casa – mesmo ele que nunca tirava folga havia resolvido acordar mais tarde em casa naquele dia. Decidiram que sairiam todos os três: pai, mãe e caçula, iriam até um parque no meio da cidade aproveitar o sol, o céu e o calor. E pensavam que iriam cedo, respirar o ar que vem das arvores o dia todo.

11h: a mãe, que tanto reclamava da vida, da desunião familiar que não se reunia em volta da mesa, cozinhava na sua velocidade de “não-me-pressiones”. o pai sumira na rua, sempre sumia para não brigar, para não dizer o que já não dizia mesmo. a menina assistia tevê e tentava, vez ou outra, puxar assunto com a mãe, que tinha no rosto um linha reta e rígida no lugar de um sorriso.

12h: o pai não voltava da rua. o almoço não ficava pronto, mas ninguém queria mesmo comer. a mãe cozinhava enquanto fritava uma ou outra reclamação. a menina já havia desistido de falar qualquer coisa, pois não se entende o que o outro quer dizer quando se quer fazer guerras das palavras que são ditas.

12h30: a meia hora lendária em que os três sentavam-se em torno da mesa e degustavam alegres o almoço feito com carinho para aquele dia em que todos estavam em casa, isso em sonho. nada foi feito com carinho, e quando um encheu o prato de macarrão e sentou-se em frente a um canto da mesa, outra sentou-se no sofá de couro velho em frente a algum seriado dominical depressivo. e a mãe, como sempre, estragou a ideia que tinha para si mesma ao começar a lavar, uma a uma, todas as laranjas que comprara na feira muito mais cedo.

12h40: dois comiam sozinhos, em cantos. um reparava a vida lavando laranjas.

13h: a inquietante vontade de ir logo, antes que o sol e o dia e a folga acabassem o fez abrir os portões e puxar o carro para o lado de fora. enquanto isso a caçula trocava a blusa preta por uma branca, “vou passar calor demais”, disse antes de correr a revirar gavetas. a mãe, que pelo jeito comera ameixas, repousava no banheiro. e o carro e o homem impaciente esperavam lá fora, o cuco rachando com o sol.

13h29: ainda não haviam saído, há mais de dez minutos esperavam a mãe que não parava de vagar pela casa que erguera dando a própria vida, de pedra em pedra. era uma espécie de amor, quem sabe.

13h34: sem dizer palavra e sem trancar a porta da frente, simplesmente saiu. e meu desejo era de que não perdessem o sol, o dia, a folga. era que voltassem sorrindo.

No carro, previa, seria silêncio. cada um fechado em si enquanto a mãe tentaria em vão trazer a atenção deles para si, para os pequenos problemas do cotidiano como um preço mais elevado ou alguma promoção de produtos que compraria em número de sobrevivência, de estoque para o inverno. e não haveriam respostas, ele estaria concentrado demais em não perder a calma e dizer tudo aquilo o que já não dizia e a pequena, a filha, concentrada demais em ignorar a realidade com a música que entra pelos ouvidos. ela se sentiria rejeitada demais para dizer quaisquer outras coisas e logo pararia de falar para se sentir mal. ah, esse tolo orgulho que não permite ver o quadro todo, mas só a pintura de si mesmo na tela. E ninguém entende o que o outro diz, mas o julga pelo que entendeu. Não que as dicções sejam ruins, mas na casa onde cada um ouve o que o orgulho sussurra ao pé do ouvido, não há só discórdia, mas também triste frustração e uma guerra de olhares e cala bocas.

A vontade dessa escritora que há muito perdera em fé em passeios e almoços dessa família, era gritar com a mãe até que essa engolisse todo o orgulho que lhe travava o sorriso antes que este chegasse aos seus olhos e lhe saísse pela boca. para que aproveitasse um domingo na vida sem que se incumbisse e tantas obrigações.

Mas justo naquele domingo em que o sol rachava belo e feliz no céu, ela resolveu olhar e escrever. desistira também de dizer o que já disse demais.

Os otimistas extraordinários – Elena

 

12 maio 2013

A ingratidão dos dias terminava ali. Esse mundo –  que trabalha com números exatos e não conta, nem respeita histórias – poderia contar mais uma para a estatística. E teria a honra de encaixá-la em qualquer um de seus gráficos sobre a vida humana. Uma manhã ela quis olhar pela janela do quarto e ver como estava o dia, mas o que a janela revelou foi o céu de concreto pintado de branco. Descalça deixou que o frio do chão subisse pelos pés e ao abrir outra janela deparou-se com o céu de um azul perfeito para desperdiçar vida. Achou justa a ideia de sacrificá-la, por uma nova chance a algum desconhecido. Talvez até mesmo uma nova chance para si. Reencarnação é esperança de suicida que não conhece a lei por inteiro.

Era um chamado silencioso – talvez idiota – que ela atendia. Pôs o melhor vestido, pegou um giz próximo de uma pilha de desenhos e saiu; não notariam sua distância. Os pés ainda descalços  pisavam o asfalto quente e aqueles olhares questionadores já não a perfuravam mais. Feito criança caminhava sem nada dever a ninguém, sem que alguém no mundo lhe importasse. O vestido branco cintilava a luz do sol do meio-dia e cegava os que tentassem reconhecê-la, os que tentassem encarar para ver o interior. Esses seres que para a vida: eram apenas outros números; para ela: eram apenas chances mal usadas.

“Uma vida mal vivida é equivalente a uma nova chance para outra pessoa. Não desperdice.”, rabiscou em linhas tortas abandonando o giz vermelho dentro do orelhão quebrado. Talvez fosse adulta demais para a idade, e ser adulto assim tão cedo enche de farpas qualquer coração. Saber demais em tão pouco tempo a enlouquecia. Aos poucos o sol morria e as pessoas deixavam de reparar naquele clarão ambulante vagando sem direção certa. Ia até um canto e depois voltava com o mesmo olhar opaco, que parecia não enxergar.

Elena – assim nomearam aquela vida – andou e andou, mesmo quando seu corpo urrava não conseguir mais. E no final daquele dia, quando o transe que guiou seus pés, permitiu que olhasse ao redor percebeu que estava na praia, no limite da pequena cidade onde crescera. Estava as margens da última linha do único mundo que conhecera.

Sentou-se e encarou a escuridão do mar. Estava sendo atraída por esse lugar há muito tempo, talvez há mais anos do que pode contar. Pensou no oceano como o portal perfeito e entendeu os motivos de ter vivido como viveu e terminar ali; na beira, sozinha. O sacrifício perfeito, e seu corpo faria parte da putrefação do universo. Talvez disso alguém melhor surgisse e salvasse tudo isso. Não lamentava que não seria ela a fazer.

Sem demora foi em direção àquela calmaria suicida e deixou-se levar aos poucos:
“falta de ar, fraqueza, sal nos pulmões pesados;
a não necessidade de ar pois não havia pulmão algum”

Amanhã, quem sabe?, o seu sacrifício, embora desconhecido, poderia significar a plenitude da humanidade.

Seu último pensamento foi de que todas as vidas – inúteis, como a dela – deveriam perceber e se entregar para que o mundo tivesse uma nova chance a cada novo amanhecer.

Elena – assim nomearam aquela vida que durou onze anos – acredita em  após a morte, e em otimismo na morte.

O manequim de quem é você

ou O manequim apressado

Por S. Oliv

Sem ver muito a sua frente, corria.  Prometeu para si que correria até que o fôlego lhe faltasse. Estava cansada daquele recipiente tão largo; sua alma ainda caberia sem problemas se diminuísse alguns centímetros.

“Caberia sem problemas”, repetiu ao vento.

O problema é que a louca resolvera correr no centro comercial da cidade, nas calçadas largas e abarrotadas de gente. E corria de salto quinze e sacolas enroscadas nos braços marcados. O cabelo, bem arrumado antes do ato de instabilidade mental, jazia ao vento que despenteava cada fio. Um observador mais atento conseguiria enxergar os pedaços de si que aquela mulher deixou pelo caminho que correu.  Entre os destroços de si, um cílio postiço que fora colado cuidadosamente há pouquíssimas horas e três unhas, que não eram tão suas assim, pois não cresceram no dedo que enfeitavam. A maquiagem escorria pelo rosto:  a sombra azul-turquesa fugia dos olhos, que pareciam duas torneiras abertas; um azul que não parava  de descer.

“Caberia sem problemas”, sibilava segurando o fôlego enquanto corria ainda mais rápido.

No outro canto do longo e largo calçadão, onde feito fuga a corrida dessa mulher neurótica começou, uma jovem beirando os vinte anos ainda organizava os vestidos nas araras. Pensava em quão imprevisíveis as pessoas podem ser, principalmente quando são os clientes da situação. Minutos atrás uma loira com muita postura e elegância,  unhas bem criadas e rosto delicadamente desenhado por maquiagem, entrou na loja em que a mocinha trabalhava. Vestiu-se de todos os mais caros vestidos, e de todas as pessoas que com aquelas roupas poderia ser. Mas a cada pedido que emendava, a jovem vendedora notou que sua voz ia alterando, desafinando e perdendo o tom inicial. A cada pessoa que tentava ser quando entrava nos vestidos que lhe cabiam, ela ia se transformando. E, de repente – como são episódios assim – a maquiagem azul-turquesa desenhou outras linhas naquele semblante desesperado.

“Caberia sem problemas”, disse à pequena vendedora, olhando-a lentamente de cima a baixo.

E correu! Cumprindo a promessa que fizera para todas as segundas-feiras da vida inteira.

“E está correndo”, dizem os interesseiros-observadores que pegam o que cair das sacolas – quase vazias – ancoradas nos braços da pobre jovem. Dizem, ainda, que a  Louca Azul-Turquesa nunca parou de correr, “exceto por uma vez!”, grita uma testemunha sedenta por atenção. Um dia, jura que viu a jovem subitamente parar, apenas para chutar um desses manequins sem almas e de corpos impossíveis; de relance conseguiu ver a maquiagem azul, muito intensa, que seca sobre a pele formava uma casca grossa e azul!, em seu rosto. E depois, voltou a correr.

A batalha dos dez – parte I

Lembro bem dos tempos em que a prata de dez centavos não tinha valor algum. Se pulava do bolso e rolava longe pelo chão nenhum par de olhos a seguia por muito tempo, não havia interesse em resgatá-la ou descobrir o seu paradeiro. Havia desdém pela moedinha sem valor. Os tempos eram outros e, principalmente, para os adultos essas moedas de tão irrelevante valor sequer existiam. Eram um bônus relegado às crianças que felizes encontravam dessas pelo chão. Foi o tempo em que dez centavos pagavam por um sorriso infantil onde o açúcar é comercializado.

Lembro tanto porque estava lá assistindo a tudo, e quando cresci também fui abandonando minhas suicidas de metal. Houve um tempo em que as pessoas pagavam a esperança com moedas. Um tempo em que acreditar custava dez centavos, ou menos. Tudo tão simbólico, e agora tão esquecido. As crianças, criadas para acreditar, eram levadas pela mão até o pequeno lago ou fonte escolhido e era ensinada a desejar; e a acreditar que jogando o círculo de metal na água seu desejo logo seria ouvido e, claro, atendido. Dentro das fontes dava para ver a imensidão de desejos humanos expressos em pequenos pontos brilhantes. As criaturas moldadas delicadamente na pedra, espalhavam água por caminhos diferentes e, sem piscar, observaram a tudo. Sem emoção viram nascer e morrer cada desejo de cada criança que cresceu inflando uma esperança inabalável, e as fontes enchiam-se cada vez mais de pequenos desejos até o dia em que a revolta foi desencadeada.

Durante o dia, era mais comum ver crianças à beira desses lugares sempre encantadas com o brilho surreal que emergia daquele lugar tão sagrado. Depois, elas fechavam os olhos – sempre fechavam até forçar as rugas no canto – e jogavam a moeda. O pequeno níquel era do tamanho do sonho de cada uma daquelas crianças: pequeno, mas se expandia.

Na minha infância havia uma fonte dessas perto da minha janela e durante anos observei aproximar-se dela, todos os dias, um senhor muito velho, daqueles que têm manchas nas mãos e rugas até na alma – já seca de tanto viver ao sol. Apesar da idade e do aparente cansaço ele vinha todas as tardes, pouco antes que sol caísse no horizonte e parecia desejar o mesmo todas as vezes que sem força, mas cheio de vontade atirava a esperança à fonte. Ao longe já se via que naquela mão enrugada uma moeda brilhava. Eu, menino que era, sempre achei que ele desejava outro dia de vida, naquela fonte onde nunca desejei. Cresci sem desejar nada ali, nem em outro desses lugares de magia humana. E na tarde em que ele não apareceu perdi as esperanças naquilo que eu sempre ousei acreditar. O sol derreteu mais devagar naquele dia e aquele senhor faleceu naquela tarde sem que pudesse desejar outro amanhecer para si. Sem que eu soubesse seu nome e com ele a minha esperança em fontes, poços ou lagos que realizam desejos, também se foi. Descobri que os feitiços da esperança têm pouco tempo de duração.

O que houve com a sociedade para que passassem a tratar esse simples objeto como um tesouro enterrado, encontrado em bueiros e becos escuros. Como se ao cair do bolso elas corressem até onde a luz não batia, e se sentissem dentro de um bolso novamente.

Ao decidir findar a existência monetária e conseguir fugir, logo fossem atingidas por um tilintar de arrependimento. E o arrependimento a guiava de volta para algum lugar que parecesse bolso. Correndo, achava-se, de repente, em um lugar tão escuro quanto aquele de que saiu. E decidia, por fim, ficar ali. Como se ainda houvesse esperança e alguma mão suada fosse tirá-la de onde sempre esteve.

secretamente continua…

Elena e o homem-condutor

O rosto da imortalidade vê pelos olhos do vento e a eternidade viaja de trem há um bom tempo 

A cortina escura não foi suficiente para conter os primeiros raios da nova manhã que se anunciava. O sol atravessou todos os vidros do trem e, um a um, logo todos os passageiros foram despertados para a beleza de outro dia, para a beleza de mais uma chance. Em cada viagem, as crianças e os passageiros mais velhos da locomotiva eram os que ficavam mais deslumbrados com a visão do sol nascendo entre as montanhas. Ali, o sol nascia devagar para que nenhum deles deixasse de viver o momento. Aquele que, de costas viradas para a luz do sol, visse o trem passar também veria centenas de pequenas carinhas, infantis ou não, prostradas às janelas e maravilhadas com a visão estarrecedora de uma realidade diferente da que estavam acostumados a ver existir.

No primeiro compartimento daquele tubo de madeira e ferro lotado de gente, estava o responsável por guiá-los até o ponto em que as ferragens pudessem descansar. 

O homem-condutor, que assistira àquele espetáculo por tantas décadas deixou-se impressionar outra vez.  “Os dias nunca chegam iguais”, pensou e sorriu deixando a mostra os dentes amarelados, de tanto refletir o sol. Durante esses anos em que como um menino aquele senhor, que na época não era calvo e pequeno como nesta manhã, esticou o pescoço pela janela do trem, o vento cortou-lhe o rosto e o tempo foi se moldando em cada sorriso.

Os olhos verdes, cansados e com o brilho inexplicável que só alguns percebem, refletiam toda vida que existe na natureza de vida longa e lenta.

A cascata era apenas o suicídio das águas traçando afluentes tão desordenados quanto os rios que cavaram rugas naquele rosto. O rio largo perseguia o trem há algum tempo, lado a lado, porém, mais devagar, na sua própria velocidade. E ficava mais vivo sempre que a luz do sol encontrava as suas águas toda manhã.

A natureza sabia encontrar semelhança em seu expectador. E o homem sabia que, ali, seu papel era conduzir os destinos daquelas pessoas que iam visitar parentes, conhecer o extremo do país ou daqueles que estavam fugindo.

Elena era o terceiro tipo de destino que ele estava conduzindo. Apesar de ter ouvido as lendas daquele lugar, ela não ficou impressionada com a paisagem em movimento do outro lado da janela. Enquanto isso, nos outros vagões os passageiros sentiam a aura fantástica e intocada tão peculiar do outro lado da janela, habitado por nativos misteriosos e invisíveis às centenas de olhos que os procuravam naquela manhã. Por onde passavam não havia chance de parada, o destino havia lhes reservado a modernidade e não aquele lugar.

 “Os lugares têm histórias demais”, Elena pensava mantendo o olhar firme na luz do sol, como um desafio. Vencida, subitamente os fechou, e, nesse instante, em que o sol foi apenas fogo tentando rasgar a cortina dos olhos, ela resgatou as lembranças que a fazia fugir, “deveriam ficar nos lugares que as criaram, mas insistem em me perseguir”.

A aposta unilateral fora perdida, então ela se rendeu ao céu, ao sol e à paisagem, que logo ficaria pra trás e seria outra lembrança. Uma linda, dessa vez. O sol despontando no horizonte todos os dias era o que a motivava a levantar-se e recomeçar “sempre pela última enésima vez”.

Nossa fugitiva olhou ao redor do pequeno cubículo que dividia com uma senhora, a passagem custava menos e fugir sempre custava caro: compensava. Reparou que ela havia sumido, ou melhor, sendo mais sensata: ela não estava ali, pelo menos agora.

Como quem se rende, ela debruçou-se na janela e admirou aquela cena rara por alguns momentos. O sol sorria atrás das montanhas. Sua vida em movimento, sempre deixando algo pra trás. Uma nova jornada em sua enésima fuga. As janelas estavam fechadas e seria muita tentação haver um meio de abri-las. Alguém deveria saber que ao passar por ali, o encantamento que aquele lugar exercia podia levá-los a pular. A desistir do destino ao encontrar-se ali. O vento que batia nas janelas viu que naquele rosto jovem ainda não fora traçada nenhuma linha, ela uma tela em branco esperando pela arte.

Elena sabia que estaria sempre e apenas um passo à frente de seu algoz. Ele a encontrava e ela fugia, era sempre assim. E sempre negava a fuga dizendo que era outro recomeço.  É incrível como podem se enganar com palavras, com singelos sinônimos de contexto, esses seres humanos.

De repente, o escuro encerrou a luz. A mão humana que destrói e constrói havia, afinal, estado ali. E a natureza foi interrompida pelos túneis que cortavam a mata sem motivo. Por anos o condutor foi contra aquela obra. “Túneis? Pra quê?”. Agora já havia aceitado e principalmente para ele o termo luz no fim do túnel fazia mais sentido. Sabia o que estava à frente.

Sozinha, ela lutava contra as palavras, contra as definições do que sempre fazia. Do que sempre negava. Dizendo que ela era o tempo. Dizendo que foi inventada. Negando e depois fugindo, só pra negar a fuga. Dizendo que não existia. Dizendo que recomeçava. Dizendo que era o sol. Negando outra vez. Dizendo que nascia e morria, todos os dias. Fugindo. Espalhando lembranças e recomeçando. Recomeçando a negar uma última vez. Uma brecha no tempo e no espaço, um vazio para o nada. Hora de morrer, sem fugas. Hora de morrer, sem negar dessa vez. O algoz corre nos lugares escuros só para encontrar refugio em fim de túneis de podem um dia nunca acabar.

“Porque os dias nunca são iguais”, sorriu o condutor.