TANTO O QUE PENSAR SOBRE ISSO… que eu chegava para adentrar minhas grades, ele se esforçava, inexperiente, para sair de todas elas; que, tão jovem, não aceitou viver como tantos fizeram antes (será que pensou nisso?); que, por curiosidade ou vontade – talvez os dois – descobriu o tamanho de suas asas literais; e eu confundi um periquito com beija-flor, desacostumada a vê-los em voo.
**
Nunca vi um deles voar. Apesar de ter sido criada na mesma grade que todos os periquitos que passaram por aqui, jamais os vi de asas abertas. Aquela região nas costas que, fechadas, as asas escondem, sempre foi um mistério para mim.
Levei vinte e dois anos para, finalmente, presenciar que os prisioneiros podem sim voar. Ele levou alguns meses. E os seus, que deram-lhe origem, ainda não sabem, e conversam no espaço em que nasceram.
Eu chegava, com a chave da minha gaiola nas mãos. Passos antes de alcançar o cadeado – não lembro de um dia em que meu portão teve um trinco que funcionasse, sempre o cadeado (este símbolo máximo que selava minha prisão). Passo antes, seu voo me surpreendeu: rápido, cambaleante. Devia ser a primeira vez que a gaiola parecia tão grande. Ele passou a poucos centímetros dos meus olhos, meus braços fechados junto ao corpo, e aterrissou do outro lado da rua, embaixo de um carro verde parado: uma árvore estacionada, em sua analogia.
Eu, que sempre torci para ver aqueles pássaros voarem para longe, mas nunca interferi diretamente – diante dos comentários de meu pai que dizia, com alguma frieza e alguma inocência, que morreriam lá fora – comemorei! Senti orgulho desta ave, que por engano ou plano infalível soltou-se e voou.
No meu pensamento, a cena já repassava ao terminar: rápida de início e desacelerando depois, prolongando, demorando para acabar. Acompanhei com o olhar o trajeto, pensando lentamente: um beija-fl..periquito. E não contive o êxtase ao perceber. Avisei aos gritos o ocorrido: “O passarinho azul fugiu. Ele escapou!”. A alma sorria e eu estava leve, como se pudesse voar junto, como se descobrisse as próprias asas sob a pele.
**
Há anos convivo com seres presos. Pássaros engaiolados são das memórias mais antigas.
Pelo tempo que me lembro, meu pai sempre gostou de bichos. Pelo tempo que me lembro, minha mãe também. Até aí, são verdadeiras e mentirosas essas frases. Vou reescrever, espere. “Pelo tempo que me lembro, meu pai sempre gostou de bichos, minha mãe não.”
Dos cachorros, só os periquitos e canários passaram pela aprovação dela. E ele os criou, primeiro dois deles, engaiolados como de costume por aí. Nunca entendi porquê. Qual motivo, senão inveja ou algo ainda mais banal, faria alguém construir grades, brancas, bem trabalhadas, para aprisionar o que pode voar? (amplie a grade até aonde a vista não alcança, coloque as asas em forma de palavra, como, por exemplo, “liberdade” e depois olhe ao redor). Ainda não faz sentido.
Quando o “Adão e Eva” da dezena de pássaros, todos periquitos coloridos, que moram aqui chegou, os cachorros tinha ido. As gaiolas foram de um a seis rapidamente. Uma geração de pássaros que nasceu sem saber voar, que morreu sem voar.
Fascinado pela natureza como é, penso que meu pai quis trazer um pouco de seu Paraná para esta casa, de paredes frias, quando trouxe os pássaros. Houve um tempo, no início desta coleção cruel, em que dois canários viveram aqui. Um branco e um amarelo. Juntos, os dois, cantavam a música dos canários e, por um tempo, egoísta talvez, ouvi aquele canto e esqueci, também, que odiava aquelas grades.
Minha irmã, ainda mais pequena que eu, cultivou certo carinho pelo par. Todo dia, quando meu pai descia as gaiolas ao chão, para trocar água e colocar comida, ela colocava os dedos entre as grades. Tentava tocar o que estava preso, e isso aconteceu muitas vezes.
Talvez para que não víssemos todas as nossas grades – numa época em que, para ver o céu, eu precisava escalar o tanque de pedra – meu pai colocava uma fita cassete com sons de outros pássaros. E, se você fechasse os olhos, sem respirar, talvez conseguisse imaginar-se no mundo depois das grades, com a bunda em outro lugar que não o sofá ou a cama.
Uma manhã, os canários não cantaram. Um estava com a cabeça dentro do pote d’água – uma embalagem de margarina nada segura. O outro, triste acredito, não emitia um pio.
Não me lembro se foram meses, semanas ou dias – vivia naquele tempo que o relógio não conseguia ainda contar. Não me lembro, mas o canário que restou adoeceu e morreu.
Nas duas mortes minha irmã aprendeu a perder algo de que gostava. Talvez pode ver ali que os seres presos também podem morrer, a diferença era ter vivido. E eu aprendi ali que a solidão dói, que te faz parar de cantar e que sem música também se morre.
Sobre eles, não sei se voaram de verdade antes deste final cru e cruel, um término triste em uma gaiola branca, abastecida com comida e água. Sei que morreram de asas fechadas.
Apesar de abominar suas prisões injustas, só interferi – ou tentei – uma vez no curso deste enredo. Aproveitei a gaiola baixa e, de mansinho, amarrei a portinha aberta, de modo que os pássaros pudessem sair e me afastei.
Para minha surpresa infantil, os pássaros apenas encararam aquele vão em que o cenário parecia não ter linhas. Estranharam aquela abertura ou, já acostumados, a vista embaçada sugeriu que houvessem ainda mais grades ali. Meu pai voltou e me repreendeu ao ver minha tentativa de incitar a revoada da revolução.A tradição da gaiola manteve-se firme por mais uns anos. Até hoje.
(covardes, me encaram enquanto falo das nossas gaiolas.
nem voam os que as têm, nem as criam o que as desejam)