Os otimistas extraordinários – Elena

 

12 maio 2013

A ingratidão dos dias terminava ali. Esse mundo –  que trabalha com números exatos e não conta, nem respeita histórias – poderia contar mais uma para a estatística. E teria a honra de encaixá-la em qualquer um de seus gráficos sobre a vida humana. Uma manhã ela quis olhar pela janela do quarto e ver como estava o dia, mas o que a janela revelou foi o céu de concreto pintado de branco. Descalça deixou que o frio do chão subisse pelos pés e ao abrir outra janela deparou-se com o céu de um azul perfeito para desperdiçar vida. Achou justa a ideia de sacrificá-la, por uma nova chance a algum desconhecido. Talvez até mesmo uma nova chance para si. Reencarnação é esperança de suicida que não conhece a lei por inteiro.

Era um chamado silencioso – talvez idiota – que ela atendia. Pôs o melhor vestido, pegou um giz próximo de uma pilha de desenhos e saiu; não notariam sua distância. Os pés ainda descalços  pisavam o asfalto quente e aqueles olhares questionadores já não a perfuravam mais. Feito criança caminhava sem nada dever a ninguém, sem que alguém no mundo lhe importasse. O vestido branco cintilava a luz do sol do meio-dia e cegava os que tentassem reconhecê-la, os que tentassem encarar para ver o interior. Esses seres que para a vida: eram apenas outros números; para ela: eram apenas chances mal usadas.

“Uma vida mal vivida é equivalente a uma nova chance para outra pessoa. Não desperdice.”, rabiscou em linhas tortas abandonando o giz vermelho dentro do orelhão quebrado. Talvez fosse adulta demais para a idade, e ser adulto assim tão cedo enche de farpas qualquer coração. Saber demais em tão pouco tempo a enlouquecia. Aos poucos o sol morria e as pessoas deixavam de reparar naquele clarão ambulante vagando sem direção certa. Ia até um canto e depois voltava com o mesmo olhar opaco, que parecia não enxergar.

Elena – assim nomearam aquela vida – andou e andou, mesmo quando seu corpo urrava não conseguir mais. E no final daquele dia, quando o transe que guiou seus pés, permitiu que olhasse ao redor percebeu que estava na praia, no limite da pequena cidade onde crescera. Estava as margens da última linha do único mundo que conhecera.

Sentou-se e encarou a escuridão do mar. Estava sendo atraída por esse lugar há muito tempo, talvez há mais anos do que pode contar. Pensou no oceano como o portal perfeito e entendeu os motivos de ter vivido como viveu e terminar ali; na beira, sozinha. O sacrifício perfeito, e seu corpo faria parte da putrefação do universo. Talvez disso alguém melhor surgisse e salvasse tudo isso. Não lamentava que não seria ela a fazer.

Sem demora foi em direção àquela calmaria suicida e deixou-se levar aos poucos:
“falta de ar, fraqueza, sal nos pulmões pesados;
a não necessidade de ar pois não havia pulmão algum”

Amanhã, quem sabe?, o seu sacrifício, embora desconhecido, poderia significar a plenitude da humanidade.

Seu último pensamento foi de que todas as vidas – inúteis, como a dela – deveriam perceber e se entregar para que o mundo tivesse uma nova chance a cada novo amanhecer.

Elena – assim nomearam aquela vida que durou onze anos – acredita em  após a morte, e em otimismo na morte.